Se alguma coisa boa esta crise trouxe foi um debate sobre o modelo económico, o papel do Estado e a forma como nos relacionamos com a Economia. Não me refiro à histeria paranóica dos sectores marxistas que se apressaram a proclamar a falência do Capitalismo. Mas antes ao debate sério e por quem de facto percebe do assunto, questionando mesmo aquilo que se considera estar certo e sobre o qual não há reclamações - por enquanto.
Um exemplo disso é o que (pelo menos alguns) sociólogos do trabalho chamam de co-produção do consumidor. De que se trata? De forma resumida, trata-se do uso da mão-de-obra dos consumidores posta ao serviço da entidade vendedora de um bem ou de um serviço, no fornecimento completo dos mesmos. É algo a que estamos tão habituados que nos seja solicitado, apesar de estarmos a fornecer a nossa mão-de-obra gratuitamente, que aceitamos tacitamente sem questionar ou sequer aperceber.
Um exemplo simples e demonstrativo é o por alguns chamado de sistema IKEA (embora não tenha sido esta empresa a inventá-lo): o consumidor compra um produto inacabado (neste caso uma peça de mobiliário), uma vez que é ele próprio que fornece a mão-de-obra para a montagem final do mesmo. Só no final deste processo, em que o comprador é parte incontornável, é que o fornecimento do produto se pode considerar bem sucedido. Nos Anos 80, isto era chamado de «Do it yourself / Faça você mesmo», uma expressão talvez não muito feliz do ponto de vista do marketing, mas que espelhava bem esta transferência de trabalho para o comprador. Talvez por isso tenha caído em desuso.
Outro exemplo, desta vez nos serviços, é a venda de títulos de transporte em máquinas automáticas (operadas pelo cliente, bem entendido), substituindo os vendedores directos, ou os restaurantes self-service, em que o cliente se serve e transporta a refeição até à mesa, trabalho que num restaurante normal é feito por funcionários.
Mas o exemplo mais corriqueiro e talvez mais complexo são os supermercados e os hipermercados, em que quase todas as tarefas que numa loja normal seriam feitas por funcionários são desempenhadas pelo cliente. É ele que procura os produtos no espaço onde estão armazenados (percorrendo por vezes distâncias consideráveis), retira-os para o seu carrinho de compras e transporta-os até ao local de pagamento (que funciona como uma portagem!), coloca-os em cima do balcão e ainda por cima os arruma em sacos. Veja-se toda a mão-de-obra (e tempo) que estas tarefas envolvem e que nós compradores fornecemos de forma 100% gratuita a quem nos vende. A cereja em cima do bolo é que ainda somos nós que, no fim de tudo, arrumamos o carrinho num local próprio, porque senão levam-nos a moeda de 1 € que somos obrigados a depositar..!
Este é provavelmente o exemplo máximo do outsourcing da mão-de-obra consumidora e, nos EUA, um economista encontrou uma expressão que reflecte bem esta massificação: crowdsourcing.
Existem várias justificações invocadas para a colaboração da mão-de-obra consumidora. A mais frequente é a rapidez no serviço, o que por vezes resulta de forma clara em nosso benefício (caso dos self-services). Também há razões de ordem prática, como por exemplo os móveis por montar (caso da estante da IKEA que facilmente podemos levar desmontada na mala do nosso carro e no nosso elevador, sem precisar de alugar um furgão e uma plataforma elevatória). E, por último, por razões de eficiência em função do volume: imagine-se o que seria uma loja de atendimento ao balcão capaz de vender a mesma variedade de produtos, nas mesmas quantidades e ao mesmo número de clientes que um hipermercado.
Quaisquer se sejam as vantagens, a co-produção frequentemente implica a co-autoria, e com ela a co-responsabilidade: quem montar a estante incorrectamente ou a danificar, acaba com um produto defeituoso sem que a IKEA tenha qualquer responsabilidade no facto.
Mas, acima de tudo, o lado ético e o sentido de justiça neste sistema residem no equilíbrio ou não entre a mão-de-obra fornecida gratuitamente pelo cliente e as vantagens que para ele resultam (nomeadamente em termos de preço e tempo), por comparação com as vantagens para o vendedor pela redução no seu custo de mão-de-obra.
E aqui é que se verifica por vezes a injustiça.
É suposto os preços de venda reflectirem essa redução no factor mão-de-obra, mas isto está longe de ser evidente nos preços praticados. Um exemplo claro está nas bombas de gasolina self-service e naquelas em que existe um gasolineiro a encher-nos o depósito: o preço é exactamente o mesmo, apesar de em algumas estações de serviço os clientes fazerem o trabalho de uma dúzia ou mais de gasolineiros.
E os preços praticados em hipermercados não são de forma alguma proporcionais com a mão-de-obra fornecida pelo cliente (e já nem falo no custo do uso do automóvel próprio), por comparação com os supermercados de cidade e as lojas tradicionais. E poderíamos falar de esforços não contabilizáveis inerentes ao fornecimento da mão-de-obra pelo consumidor: nomeadamente cansaço e stress. Ou seja, com recurso ao nosso trabalho (e tempo, e esforço) um hipermercado é dispensado de contratar um grande número de funcionários, e assim poupa o pagamento de um grande número de salários, para no final nos vender por pouco mais barato (ou às vezes nem isso) que o minimercado ou a mercearia do bairro. Não é por acaso que os seus lucros são fenomenais.
Um paralelo que podemos traçar é com os serviços públicos: seja preenchendo papelada em casa, ou com todas as medidas de
e-government, que nos permitem fazer via internet, 24 horas por dia, o trabalho de um grande número de funcionários públicos (que apesar disso são 750 mil num país de 10 milhões de habitantes, e que sem dúvida não estão disponíveis 24 horas por dia, 7 dias por semana), o Estado acaba por poupar muito dinheiro em horas de trabalho que nós fornecemos. E onde está a correspondente redução nos impostos? Não está.
É por isto que o debate sobre o modelo económico e o papel do Estado é saudável. É justo e necessário que se questionem os métodos e as margens de lucro dos agentes económicos privados (em particular os bancos; os mesmos que nos cobram por transferências bancárias e despesas de manutenção, que nada mais são do que "onerosas" movimentações de electrões). Mas «first things first»: primeiro que tudo é preciso questionar é o que o Estado nos tira e dos dá, e para quê. É que se eu não estiver satisfeito com um banco, um hipermercado ou um self-service, sou livre de escolher outro. Mas Estado, só há um no mercado.