quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Vergonha

Obviamente que não me refiro a Nelson Évora, nem a Vanessa Fernandes, nem a Gustavo Lima, nem a nenhum dos outros atletas que tiveram uma participação positiva. Nem sequer aos que tiveram uma participação vergonhosa.

Refiro-me ao facto de há 110 anos que se disputam olimpíadas e a de hoje foi apenas a 4ª medalha de ouro obtida por portugueses. Isso sim é uma prestação vergonhosa.

No final do Século XIX, a educação física foi uma das "modernices" que o Rei Dom Carlos se esforçou por introduzir em Portugal, também aqui querendo tirar o país da atraso cultural. Apesar das críticas dos retrógrados do costume, o hábito de praticar sport - como era chamado na altura - foi introduzido, em particular a ginástica. Mas foi um desporto de equipa, o foot ball, o que teve maior popularidade, ainda que ridicularizado na imprensa. Ciente da importância da prática desportiva por toda as camadas da população, Dom Carlos fundou ele próprio o Ginásio Clube Português e foi por sua iniciativa que se criou um grande clube desportivo destinado à população em geral: o Sporting Clube de Portugal.

Décadas depois, foi a Mocidade Portuguesa o grande motor da prática desportiva, dando oportunidade a gerações inteiras de terem contacto com modalidades desportivas antes inacessíveis; o maior exemplo é a vela, cuja prática foi incentivada através da distribuição de um grande número de Lusitos, pequenos barcos à vela de iniciação, na então Metrópole e em África. Mas outros desportos tiveram um grande desenvolvimento e popularidade, nomeadamente o hóquei em patins, de que haviam campeonatos provinciais (no Ultramar) além do nacional. O futebol, esse, não precisou de ajuda para crescer. Até porque a gente é preguiçosa e o que gosta mesmo é de ver e não de praticar.

Com o 25 de Abril, a Mocidade foi extinta e a promoção da educação física conotada com a ideologia fascista (em particular a ginástica). Nas escolas, a educação física para os rapazes foi quase reduzida a futebol, basket e pouco mais, enquanto as raparigas foram deixadas a praticar o seu desporto favorito: dar à língua. Felizmente que nessa mesma altura se instalou o eleitoralismo nas autarquias, levando a que a construção dos pavilhões gimnodesportivos se tornasse numa moda. Infelizmente, como é frequente nas obras eleitoralistas, muitos desses pavilhões acabaram por não ser devidamente aproveitados por falta de orçamento, de professores qualificados ou sequer de vontade. O mesmo se passou com a moda seguinte, a das piscinas municipais. Apesar disso, o país viu crescer o seu parque desportivo de forma notável, mas nem assim a prática desportiva se popularizou a níveis europeus.

Vieram os anos 90 e a moda do corpo atlético exigido a quem tem vida sedentária. Vieram os ginásios, caros e exíguos, à excepção de umas dúzias de health clubs com preços inacessíveis à maioria. Vieram os iogurtes com aloé vera, os cereais integrais, os cremes e os suplementos alimentares milagrosos, e as bugigangas mecânicas e electrónicas das televendas. Nas cidades mais ricas, passaram-se a ver mulheres e homens entre os 20 e os 40 anos mais magros, mas a má constituição física (muito baixa estatura das mulheres, pernas curtas, troncos desproporcionados) continuou, pois os ginásios e as dietas não compensam a falta de educação física na infância.

Há anos que são prometidas vias pedestres e ciclovias por todo o lado; promessas em regra vãs, pois a anarquia urbanística não permite a sua construção na maioria das povoações.

Veio o Euro 2004: de uma assentada construíram-se 10 novos estádios de futebol, e nem um deles compatível com atletismo. Em Lisboa, os atletas continuam com os mesmos estádios de há décadas (Estádio Nacional, 1º de Maio, o antigo Estádio da FNAT, Estádio Universitário), menos o antigo Estádio de Alvalade. Quem quer correr em Lisboa, tem que se resignar com a beira-Tejo: no Parque das Nações, ou por entre buracos, automóveis, gradeamentos, contentores de lixo e de entulho e toda a espécie de obstáculos deixados pelo desmazêlo e cretinice da Administração do Porto de Lisboa ao longo dos quilómetros de frente ribeirinha.

Estamos em 2008 e estranhamos a falta de resultados desportivos. Estamos preocupados porque os miúdos estão cada vez mais gordos e menos saudáveis - e violentos. Queixamo-nos que passam horas, sozinhos, com as playstations que custam centenas de euros, mas no Natal não oferecemos uma bola de vólei ou uma raquete de ténis.

Estamos sempre à espera que o Estado faça qualquer coisa.

4 comentários:

CAP CRÉUS disse...

Muito bem escrito!
Subscrevo por inteiro!

Joao Quaresma disse...

Obrigado! :)

Gi disse...

É verdade que há muito pouco estímulo à prática de desporto em Portugal.
Nem sequer a construção de estádios e outras instalações, em tempos recentes, teve isso em mente mas sim, como de costume, comprazer a indústria do betão.

Também é verdade que a sociedade civil não faz mais do que dar à língua e esperar sentada. Subscrevo inteiramente o seu parágrafo final.

Joao Quaresma disse...

Obrigado, Gi.

Eu poderia acrescentar que é também uma vergonha que um país com o clima como o nosso não tenha um único tenista de nível internacional, um jogador de golfe, quase não se pratiquem desportos equestres, que a vela seja limitadíssima e que haja desportos (hóquei em campo, por exemplo) que nem sequer se praticam.

Miséria.